Levou um tempo para Shenmue ser reconhecido como uma obra necessária nos videogames em uma escala maior. Uma das maiores surpresas dos últimos anos entre adaptações de jogos para a televisão, estreou neste último domingo (6) pelo serviço de transmissão ao vivo, Crunchyroll - a série é realizada em uma produção Estados Unidos e Japão. As animações japonesas, enfim, caíram no gosto do público - e era raro essa relação desde que conhecemos séries como Transformers (a icônica série animada dos anos 80 que dispensa apresentações) e os ocidentalizados: ThunderCats (idem) e Speed Racer (mais um ícone, dos anos 60).
Não há dúvidas que a série de jogos Shenmue é uma obra visionária e a maior realização assinada por Yu Suzuki (Virtua Fighter, Out Run). Ignorada pelos japoneses em primeiro momento, anos depois a série acabou parando no topo da lista entre séries de jogos que mereciam uma continuação pela renomada revista nipônica Famitsu (já numa geração dominada por PlayStation 3 e X-Box 360).
Prometido como uma série que mudaria a história dos videogames - e planejado originalmente no Dreamcast (a última grande aposta da SEGA no mercado de consoles) - foi pensada por Suzuki como uma saga de onze capítulos (com início, meio e fim) tendo inclusive mudanças de tempo - o primeiro jogo a introduzir uma aventura de mundo aberto em tempo real (tendo uma certa inspiração em jogos interativos de relacionamentos). Em teoria, um jogo de RPG, mas, na prática, um jogo muito mais complexo em sua estrutura - unindo um simulador de ação estilo jogo de luta com evolução de personagem e outras interações com o mundo ao seu redor. Suas primeiras informações datam de 98 - já durante o lançamento do Dreamcast - até seu lançamento em 2000, ganhando apenas uma continuação, Shenmue II, em 2001 (praticamente o ano derradeiro da SEGA com o seu último console).
Shenmue foi também eleito pela Nintendo o jogo mais inovador de 2001 em uma premiação especial daquele período. Quem diria, a Nintendo premiar a SEGA algum dia, não ?
Shenmue tem muita ligação com os últimos anos da era de ouro da SEGA. O Dreamcast foi um console desenvolvido com a promessa de ser expandido (o que logo presumimos uma ousada tentativa de ser um Mega Drive da geração 128 Bits), e Shenmue foi realmente planejado para ter seu começo, meio e fim por lá - se consagrando assim um título com uma série definitiva no console. Mas, infelizmente, isso não foi possível. Com o fim da divisão de consoles da SEGA, Shenmue II ganhou apenas versões japonesas e europeias para o Dreamcast e versões exclusivas, levemente atualizada, para as concorrentes (X Box) e uma coletânea reunindo os dois primeiros jogos que posteriormente saiu para PC (Steam) às vésperas de uma inesperada campanha de arrecadação de fundos para um terceiro jogo.
A arrecadação de fundos para Shenmue III foi extremamente bem sucedida e um dos maiores recordes da história dos videogames - o maior recorde de arrecadação da história do site Kickstarter relacionado a um jogo eletrônico (tendo ao todo U$$ 6,3 milhões de 69, 320 apoiadores).
O sucesso de Shenmue III confirmou a volta do título aos holofotes. Desta vez, para uma série de animação. O curioso é: como irão preceder a série de forma satisfatória se a série de jogos em si ainda não foi finalizada ? Ou será que seguirão para um outro rumo ? Quando conhecemos Shenmue, entendemos que a sua história seja algo fechado e com um desfecho definitivo - ainda que existam projetos paralelos (um deles, o cancelado Shenmue Online - que parece sugerir acontecimentos futuros da cronologia regular).
Isso se torna algo bastante raro e inédito na trama de uma série de jogos: Shenmue não foi realmente planejado apenas como um produto comercial e sim planejado para ser um produto para ser visado como uma obra de arte, ser um marco na tecnologia dos simuladores de ação - por essa visão extremamente ousada, a produção eletrônica se tornou um dos jogos mais caros da história e até suspeita-se que foi um dos motivos os quais a SEGA teria tido tanto prejuízo no retorno a ponto de desistir de vez do mercado de consoles. Porém, a volta por cima e o reconhecimento veio com a campanha de Shenmue III e o investimento na série em uma animação - a fim de expandir os seus holofotes.
Como de praxe, a adaptação segue fórmulas de outras do gênero: antecede personagens e acontecimentos entre os jogos homônimos logo no primeiro episódio - para, assim, buscar uma atualização que possa concentrar entre quem já conhece a história original e quem ainda é um caminhante de primeira visita.
A animação acerta em preencher lacunas deixadas pelos jogos originais e afina a personalidade de Ryo Hazuki - protagonista que é controlado pelo jogador. É importante frisar esse detalhe: uma vez que o personagem Ryo é controlado pelo jogador, o herói se apresenta sempre sóbrio e o foco é muito mais a relação e as reações do jogador por fora que, de alguma forma, se encaixa com os acontecimentos os quais o personagem é submetido - um jovem detetive por acaso e que decide investigar por conta própria o assassinato do pai através de um misterioso e perigoso líder de uma organização criminosa, seu nome: Lan Di. Em paralelo, um artefato perdido e uma moça que introduz a trama ao jogador e, na série, profetiza uma profecia, seu nome: Shenhua (praticamente, quase o nome que leva o título da história e do jogo original, embora esteja relacionada a uma árvore).
Ironicamente, a história da adaptação confronta decisões do personagem - como o fato dele mesmo assumir um papel arriscado como investigador ao invés de deixar isso para as autoridades competentes. A afinação de personalidade ainda busca construir essa justificativa: por que Ryo se apresenta tão sóbrio ? Logo, com toda a competente direção do desenho (nomeada por Shikara Sakurai) podemos ver uma certa sensibilidade na cena mais trágica da história - um tom mais silencioso - o qual ecoa nos sentimentos do personagem pelo decorrer dos minutos seguintes - reconhecida por Nozomi Harazaki (a queridinha que ilustra os encartes do primeiro jogo), uma personagem que então acaba por se surpreender pela repentina mudança no seu senso de humor - um involuntário tapa na cara contra quem achava que o protagonista não era tão interessante por que ele sempre andava "tão sério" (talvez a mentalidade ocidentalizada tenha afetado esse ponto de vista para alguns).
O traço tem direção de Kensuke Ishikawa (Full Metal Panic). Apesar de seguir a suavidade das animações japonesas homônimas, é engrandecida pela bela fotografia - o jogo de luzes e sombras e cenários nevosos traz um tom épico para a animação.
Shenmue the Animation tem em seu elenco de produção uma grande parceria com a Adult Swim e a Telecom Animation Film. A Adult Swim é conhecida por exibir animações adultas no Cartoon Network durante as madrugadas da Toonami. Já a Telecom é uma divisão da TMS Entertainment, fundada em 1975, responsável também por cultuadas e clássicas séries animadas, como a segunda temporada de Lupim III, e até mesmo envolvida em séries da Disney, como a primeira temporada de DuckTales. Outra curiosidade é que a TMS (o qual a Telecom é subsidiária) é uma divisão de animações da própria SEGA. E a mesma prometeu realmente investir em suas marcas de sucesso, é capaz de podermos, muito brevemente, ver Streets of Rage, Golden Axe ou até Shinobi - quem sabe ? Mas Shenmue veio mais rápido do que se imaginava, uma das grandes surpresas num momento tão turbulento para o mundo e crítico para a indústria do entretenimento. Mas a roda de girar novos produtos não pode parar.
SESSÃO CRÍTICA
Títulos alternativos: シェンムー 迅雷 (Shenmū Jinrai)
Duração: 23 Min
Gênero: Ação (desenho)
EM VÍDEO
Assista Shenmue The Animation em Crunchyroll