Poucas adaptações conseguem atender com a mesma qualidade às
obras literárias. Filmes de grande sucesso, considerados fiéis às obras de origem, mostram que fidelidade
não é tudo para serem de qualidade. Blade Runner mostra que fidelidade é
diferente de qualidade.
A versão cinematográfica de Ridley Scott é a prova viva que
a maior importância de uma adaptação é manter a essência do original, não uma
versão xerocada de imagens compostas. O que funciona numa mídia, nem sempre
pode funcionar com a mesma naturalidade em outra (certos filmes de quadrinhos,
respeitado por alguns, provaram que não passam só de um álbum de figurinhas compostas
de sua origem).
Há visíveis mudanças que já se tornaram de certa forma
marcas registradas do diretor. A violência gráfica, bem retratada no livro, e a
roupagem mais sedutora e obscura são pontos perceptíveis até mesmo seguidos por
outras produções futuristas do gênero, adotada pelo universo “cyberpunk”, uma
tendência que pegou nos anos 90 graças a exploração da tecnologia – como os
conceitos da realidade virtual, fortissimamente adotada como o próximo grande
passo de interação da humanidade ainda no começo da década que posteriormente
começou a ser tomada com a notícia dos primeiros passos da internet em 96 - o
que praticamente substituiu a teoria de interatividade entre a humanidade
através de uma realidade virtual mais prática e mais simples que imaginávamos.
Blade “Lâminas” e Runner “Corredor” ou “Corredor de Lâmina”,
numa estranha tradução propriamente dita do título do filme, na verdade se
trata de um outro ponto de vista comercial idealizado pelos produtores para
vender o filme a um público geral, em comparação ao longo título de Philp K.
Dick: “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” que leva em consideração um
questionamento da humanidade de uma
máquina: “Se homens possuem sentimentos, máquinas também ?” num outro ponto de
vista filosófico.
Quanto ao título cinematográfico, mais direcionado a
profissão do protagonista, leva diretamente ao ponto principal da ação da
história – ao invés de focar o plano de fundo que é levado em consideração o
título do livro. Seu protagonista, Rick Decard, um caçador de androides, é
designado a concluir sua missão. Ao invés do que é detalhado no livro, mais
tido como um caçador de recompensas em favor de um objeto de desejo para se
firmar na sociedade, é trocado pelo vazio derivado de toda a caça.
Se inicialmente o primeiro roteiro se resumia a apenas um
filme de caça e caçador, feito cão e gato, a história apresentada aos cinemas
manteve a essência do original: o questionamento filosófico. Foram retirados os
detalhes da vida pessoal de Decard e reforçando os vazios não preenchidos pelo
livro genial de K. Dick – o senso de humor tornava a obra mais leve do que o
tema em questão, fazendo com que tal detalhe provavelmente não seja percebido
nem mesmo pelo leitor, apenas acompanhando ou deduzindo sobre aquela situação.
Porém, com o ambiente
“noturno” dos anos 80 em relação ao ambiente mais “colorido” dos anos 60, era
logo percebido que estávamos acompanhando uma outra história do personagem Rick
Decard. Praticamente uma releitura que não ignora o seu universo, se torna uma
expansão ou uma sequência dele. Assim que a história começa, já nos colocamos
cientes sobre a existência dos androides fugitivos e da existência dos
caçadores de androides. Sendo assim, com um seguimento adiantes com
questionamentos mais profundos e vilões ainda mais ameaçadores.
No caso dos androides, assim como no livro, não podemos
deduzir visualmente quem são os androides e quem são os humanos. Porém, no filme, podemos teorizar pistas,
como a forma de andar e a maneira de olhar. Roy Batty - o vilão interpretado por Rutger Hauer - por exemplo, possui força
sobrecomum que pode ser aumentada, visivelmente, através da dor. Já a personagem Pris - interpretada pela musa Daryl Hannah - possui talento multifacetado em acrobacia e
usa maquiagem o tempo todo. Fora os
anões vestidos como brinquedos de seu criador, J.F. Sebastian (William Sanderson), que substitui o autista John F. Isidore do livro.
A visão religiosa do livro (o mensageiro Wilbur Mercer que
aparece nas visões de Decard e que teoriza a existência dos androides e da
humanidade) é substituída por um confronto mais humanizado entre criador e criação
– concluindo-se de uma forma bastante cruel (é o ponto mais violento do filme)
– parte do que vem realmente acontecendo recentemente entre pais e filhos em
favor de um aparente desamparo ou diante de uma delicada decisão. Não deixa de ser bíblico e prova que o filme
não deixa nenhum ponto importante sugerido ou abordado filosoficamente pelo
livro. Outra diferença está nas armas, menos sofisticadas do que retratadas na
obra original e mais comuns com o mundo atual – as armas com feixes de luz
foram substituídas por aparentes armas de efeito comum.
Como uma música clássica moderna , a trilha de Vangelis
adere toda a gostosa e misteriosa mágica daquela geração embalada pela música
eletrônica – um ponto marcante da indústria oitentista, junto a ascensão tecnológica
(retratada pelo mundo do entretenimento, muitas vezes, como algo de outro mundo
ou alienígena) - caiu como uma luva por aqui.
Cogita-se uma continuação deste clássico exemplar de
adaptação. O importante é que não venham aderir aos vícios da geração retro –
que é tentar rebuscar o que já estava bem construído no passado apenas para
efeitos de nostalgia – mas de trazer a nós novas histórias, novas formas ainda
mais profundas de explorar a humanidade e as suas criações, sem fugir da sua
essência (assim como Ridley Scott fez quando atualizou a obra de Philip K. Dick
aos anos 80).
Na primeira versão para os cinemas, Decard descreve em
muitas falas em off seus pensamentos, uma justificativa encontrada pelos
produtores para que o personagem pudesse construir uma conexão menos obscura
com os telespectadores de grande circuito. Isso acabou não dando muito certo,
já que Blade Runner foi bombardeado pela crítica e obteve fracasso de público
na época de seu lançamento. Só 10 anos depois, com o avanço da tecnologia e as
teorias envolvendo a realidade virtual, a familiarização com grandes sucessos
como Robocop (um mundo visto com uma irônica visão política e violência sem
censura do ousado Paul Verhoven); O Exterminador do Futuro 1 e 2 (grandes
produções que exploram de forma impactante o terror e o gênero ação, bastante
em alta, golpes de mestre do genial e excêntrico James Cameron); e Akira (e a sua
visão futurista e caótica dos incríveis mangás japoneses do sensei Katsuhiro Otomo ) ficaram aparentemente
claras as intenções de Blade Runner para um público Geração X, envolvido em
globalização e fim do socialismo em um mundo cheio de adolescentes rebeldes, em
sua maioria aderindo mais a tendência do que atitude, o filme de Ridley Scott
ficou mais bonito para essa geração que (agora) já sabia do que ele estava
falando (ou então, Philip K. Dick).
A retirada das falas pode parecer estranha ao espectador tradicional
(que assistiu ao original de 82), mas trás ao espectador técnico/ crítico a
liberdade de criar o seu subtexto na teoria. As possibilidades de rescrever a
história se tornam mais amplas.
A versão final (ou “Final Cut”) encaixa direitinho, e mais
mastigada, os pensamentos de Decard, sugeridos nos momentos finais da versão do
diretor. Voltamos a nos questionar sobre as memórias perdidas – enquanto Rachel (Sean Young) voltava a tocar piano, Decard (Harrison Ford) se lembra do unicórnio. Diferente da versão do
diretor, que vê a miniatura de papel e no fim relembra (o espectador, menos
preocupado com as evidências, não associaria a cena do piano).
Definitivamente um trabalho visionário comparado a outras
produções de ficção em tempos mais remotos, desde o lendário Metrópolis (1927)
de Fritz Lang, e grande idealizador das características que vimos nessas obras
(carros voadores e a relação familiar entre homem e máquina) ao acréscimo de um
cenário tomado pela decadência ambiental,
fazem de Blade Runner (embora reconhecido tardiamente) um merecido
clássico moderno cultuado.
S E S S Ã O C R Í T I C A-
Título Original: Blade Runner
Títulos Alternativos: Blade Runner: Director’s Cut; Blade Runner: The Final Cut; Blade Runner: Definitive Edition
Títulos Alternativos: Blade Runner: Director’s Cut; Blade Runner: The Final Cut; Blade Runner: Definitive Edition
Gênero: Ficção Científica
País: E.U.A.
Direção: Ridley Scott
Duração: 117 Minutos (Versão de Cinema)/ 116 Minutos (Versão do Diretor)/ 117 Minutos (Versão Definitiva)
País: E.U.A.
Direção: Ridley Scott
Duração: 117 Minutos (Versão de Cinema)/ 116 Minutos (Versão do Diretor)/ 117 Minutos (Versão Definitiva)
Ano: 1982 (Versão de Cinema) / 1991
(Versão do Diretor) / 2007 (Versão Definitiva)